quarta-feira, 10 de março de 2010

O que aconteceu, mulher?


 
Na passagem de ano, meu irmão e sua noiva (ainda iriam se casar) convidaram nossa família para passar a virada em Cabuçu. Confesso que, por mim, ficava no aconchego do meu lar, curtindo meus LPs e saboreando uma cerveja Bohemia bem gelada. Mas como a família toda iria, resolvi ir de boa. E me arrependi. Passei os dias tendo que ouvir “me dá patinha”, “fica atoladinha”, “lobo mau”, “rebolexion”, “relaxe na bica”, enfim, os hits do verão. Triste, muito triste, triste até demais.
Mas este som horroroso não era a única inquietação que permeava minha mente naqueles dias. Acompanhando tudo isto, via cenas tétricas, que me fizeram questionar profundamente uma série de valores. E sim, sei que estou pronto para ser chamado de “elitista”, “arrogante”, “tradicional”, “antigo” e o diabo a quatro. Não ligo, quero expressar minha opinião. Posso?
Seguindo o “ritmo” da canção, via várias mulheres – muitas delas jovens, entre seus quatorze a vinte e cinco anos – entregando-se freneticamente a danças maliciosas, ousadas e até certo ponto agressivas. Coisas como simular sexo oral, em posição “de quatro”, se ofertar com diversos homens... para quem vive nos eventos de camisa colorida da vida, cenas como essa são extremamente comuns. Pode até ser. Mas, para mim, faz voltar alguns anos no tempo e fazer uma profunda análise sobre o que pode explicar várias mulheres demonstrando um comportamento tipicamente subalterno, mesmo depois de toda luta por uma emancipação.
Como muitos estão carecas de saber, até a década de 1960 a mulher basicamente era um “nada” em termos de existência. Não passava de um mero “instrumento para cuidar do lar e reproduzir”, se quisesse ter algum tipo de respeito. Relegada a cozinha e as tarefas domésticas, como limpar a casa e observar os filhos, sofriam de uma grande limitação. E quando tentavam ousar (fosse estudando, fazendo atividades braçais ou trabalhando com artes), eram rejeitadas e tidas como “esquisitices” dentro da concepção de “mundo normal”.
A partir dos anos 60, o movimento feminista começa a questionar este papel limitado da mulher na sociedade. Tenta, essencialmente por meio de atitudes, mostrar que a mulher pode sim exercer atividades ditas “masculinas”. Busca uma emancipação maior deste papel da mulher. Conseqüentemente, isto reflete na cultura. A música, é claro, estava lá, e é neste período que vemos a figura feminina sendo agora valorizada – e, o que é melhor, com várias compositoras, expressando o seu verdadeiro eu. Mulheres como Vera Brasil, Sônia Rosa, Teresa Souza, Tuca, Rita Lee, Sueli Costa, Sônia Burnier, Solange Boecke, Ana Maria Bahiana, Joyce, Ana Terra, Isolda e Fátima Guedes começam a escrever uma visão feminina dentro das canções. Mostram a luta que esta mulher encara pelo seu dia-a-dia, pela busca do seu cotidiano. Claro, ainda que muitas vezes inserindo pelo viés do romantismo, mas ainda assim com uma nova visão. Não a da mulher que se perde na orgia (como disse Sinhô em Gosto Que Me Enrosco), nem da miserável que vivia traindo (como Vingança, do Lupicínio Rodrigues), mas da mulher que buscava ser o que era e o que sentia.
Paralelamente a isto, uma geração de grandes cantoras aparecia para retratar esta nova ênfase do eu-lírico feminino. Simone, Gal Costa, Maria Bethânia, Elis Regina, Fafá de Belém, Nara Leão e Elba Ramalho são algumas que conseguiram tornar-se conhecidas até os dias atuais. Em um plano mais ignorado atualmente, tínhamos Maria Martha, Célia, as outroras citadas Sueli Franco, Joyce e Fátima Guedes, Diana Pequeno, Maria Creuza, Jane Duboc, Marlui Miranda, Amelinha, enfim, um time de respeito. Todas elas, sem exceções, cantaram canções que refletiam a mulher emancipando-se. Uma Nova Mulher, como canta a Simone numa belíssima canção de 1989. Aliás, escrita por dois sambistas, Paulo Debétio e Paulinho Rezende.
Sim, eu sei... o samba sempre foi essencialmente machista. Mas daí descambar para o retrocesso, por favor... é isto que me interrogo. A mulher lutou tanto por esta emancipação, mas parece que as novas gerações vem, pouco a pouco, destruindo toda esta luta. O pior, subvertendo argumentos utilizados por toda aquela década de 60 e 70. É bem verdade que alguns versos soam forçosamente demagogos, como os de Vinícius para a canção Regra Três ou os de Chico Buarque para Pedaço de Mim. Mas nenhum dos dois negou veementemente serem “canalhas”. Senão, será que teríamos ouvido Mil Perdões ou Escravo da Alegria?
O grande senão de toda história começa do instante que a mulher demonstra esquecer de que lutou por anos contra esta imagem subalterna, a imagem da Amélia ou a “da cor do pecado”. Não tirando, é claro, o mérito do Ataulfo, do Mário Lago e do Bororó, todos grandes compositores. Mas declaradamente machistas, reducionistas.
E então, vai chegar ao ponto? Sim. O que ocorre é que vemos hoje mulheres restituindo a imagem vazia de fúteis, em busca de uma pretensa curtição. Ao subverter a sua liberdade sexual, querem responder na mesma moeda com comportamentos usados por homens ao longo dos anos. Ontem, quando conversava com minha Moreninha (e que resultou na inspiração deste texto), ela citou uma coisa interessante: muitas mulheres, no afã de quererem “vingar-se”, vivem seus relacionamentos sem nenhum laço de comprometimento, dizendo que “Ah, eu vou trair, afinal ele me trai”... o pior é que este tipo de comportamento vem se tornando cada vez mais usual nos dias atuais, parecendo que responder na mesma moeda é a coisa mais eficiente do mundo.
Digo-lhes: se o código romano fosse eficiente, estaríamos até hoje sob o julgo dos césares. A idéia do “olho por olho” não funciona. O respeito, o valor, o carinho, a cumplicidade, elementos fundamentais para a boa vivência entre os seres, vem cada vez mais se perdendo. Na música, isto já é claro: hoje, a garota diz com todas as letras que é “estrelinha”, “que é cachorra, que é gatinha”, que quer ser possuída por “um gatinho selvagem” que “arrocha” e pede, sem o menor pudor, para o homem deixá-la “toda enfiada”, pois ela já deu pra fulano, beltrano, ciclano e deltrano, sendo que este não usou camisinha e engravidou a cachorrinha, que “lhe dá, lhe dá patinha”.
Preocupa-me. Ser sincero hoje é ser idiota. Muitos devem olhar este artigo e dizer “eis um idiota”, ou melhor, “ih, que otário”. Talvez um idiota, um otário; com certeza, uma pessoa preocupada com esta degradação humana. Afinal, música você seleciona. Pessoas também. Mas quando todas elas absorvem um padrão... ainda bem que muitos de nós não seguimos padrões.

É... acho que as mulheres deveriam repensar um pouco sobre o que escutam. Penso que elas poderiam tentar entender que são mais que periguetes “relaxando na bica”, com o “biquíni enfiado na bundinha”. Se elas preferem “mostrar o pacotão”, azar. Mas fico triste em ver que isto vem se tornando uma constante. E os mesmos esteriotipos, que tanto lutou diversas feministas, são aos poucos revividos. Precisam, portanto, as mulheres buscarem um pouco da sua história de luta e esquecerem o papel meramente revanchista. Como disse Moreninha ontem, “o que é coisa de mulher e coisa de homem”? Somos seres humanos. Simplesmente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário