sexta-feira, 19 de março de 2010

Uma noite para a história



Acabei de ler no site Terra que será lançado no Festival “É Tudo Verdade” o filme Uma Noite em 67, que retrata o dia da final do III Festival da Música Popular Brasileira, verdadeiro divisor de águas da história de nossa canção. Apesar de ser um documentário, repleto de entrevistas de personagens como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu Lobo e (do hoje esquecido) Sérgio Ricardo, cabe dizer que é um marco importante ao relatar uma noite que nos brindou com o melhor de nossa música, tanto em termos de riqueza quanto de popularidade. Aliás, porque não dizer, uma noite beatloriana. Sim, perdoe-me o neologismo; mas ele vem bem a calhar. Afinal, os Beatles dividiam a platéia, fosse pela admiração ou pela ojeriza. Mas não é dos Beatles que quero falar, mas sim deste festival maravilhoso, plural em sua essência e repleto de belas obras.
Aliás, é muito fácil reduzirmos este festival a seus grandes marcos na história da MPB. Não é segredo pra ninguém que “Roda Viva”, “Alegria, Alegria”, “Domingo no Parque” e a vencedora “Ponteio” mudaram totalmente os rumos do nosso cancioneiro. Era inimaginável a forma como estas canções foram concebidas e apresentadas, dando uma nova visão de instrumentação e arranjo (caso das pré-tropicalistas canções de Caetano e Gil), seja na fusão de elementos e arranjo (caso da obra-prima do Chico) e pela junção entre o regional, a bossa-nova e uma instrumentação original e poderosa (caso da belíssima parceria entre Edu Lobo e José Carlos Capinan). Entretanto, outras belas canções surgiram e precisamos lembrar delas também.
Comecemos pela fantástica “Capoeirada”, do mestre Erasmo Carlos. Mestre sim! Um gênio, um dos primeiros a ousar e querer fundir o rock com o samba. E este híbrido regional criado pelo “Tremendão” perdeu-se na história, já que foi rejeitado tanto pelos jovem-guardistas (que não entendiam a proposta de enfiar um berimbau numa música com guitarras) quanto pelos vanguardistas (que não aceitavam a figura do Erasmo, tanto por ser jovem-guardista quanto por ser provocador). O fato é que a música é tão genial que foi convertida numa versão estrangeira para orquestras, chamada “Easy Days, Easy Nights”. Pois é... perdida no tempo, mas lembrada eternamente.
Outra canção marcante e belíssima é uma das obras-primas da MPB, criada pelo (recentemente falecido) Johnny Alf: “Eu e a Brisa” é uma das músicas mais injustiçadas, na belíssima interpretação da cantora Márcia. Se nos ensaios esta canção provocou emoção em todos os músicos, ela simplesmente não comoveu um público que se dividia entre a “rebeldia sem causa” dos jovem-guardistas e a “luta pelo poder armado e o resto que se dane” dos vanguardistas. Uma canção que sabe penetrar no âmago do que é mais belo e rico ficou perdida nas semi-finais, mas justiça seja feita, virou um sucesso logo após o evento.
Vale destacar o trabalho da já vencedora dupla Dori Caymmi/Nelsinho Motta na espetacular “O Cantador”. Na minha opinião, figura como uma das mais belas interpretações da Elis Regina, embora ela tenha “sacaneado” a Nana Caymmi um ano antes, passando a perna para gravar “Saveiros”, da dupla supracitada (e que fora vencedora do I Festival Internacional da Canção, em 1966). “O Cantador” tem uma letra empolgante e rica e, como se não bastasse, foi dela que surgiu a motivação para Edu Lobo criar a melodia e o refrão da campeoníssima “Ponteio”. Danilo pedira uma letra para Edu Lobo antes de Nelsinho e, na parte que depois seria conhecida como “Ah, eu canto a dor, canto a vida e a morte, eu canto o amor”, entraria um certo “Ah, quem me dera agora, eu tivesse a viola pra cantar”. Tente inserir: dá certinho!
E por que não falar do brilhante Chico Maranhão? Exatos treze anos antes dele compor o belíssimo bardo de protesto “Diverdade”, gravado pela minha musa Diana Pequeno, fez outra obra belíssima, empolgante, que fez todo o teatro Paramount (ou Record Centro) abrir sombrinhas e guarda-chuvas: trata-se do delicioso frevo “Gabriela”, que empolgou toda a platéia, que dançou ritmado na vigorosa interpretação de Magro, Miltinho, Aquiles e Ruy. Nada mais, nada menos que o brilhante MPB4, que um ano antes explodirá com a fenomenal “É Preciso Perdoar”, dos baianos Alcyvando Luz e Carlos Coqueijo.
Roberto Carlos, no papel de cantor, fez uma espetacular interpretação no melhor estilo “João Gilberto” e cantou com dignidade uma belíssima canção, hoje pouco lembrada. Trata-se de “Maria, Carnaval e Cinzas”, de Luiz Carlos Paraná, que morreria seis anos depois, mas que havia sido um dos responsáveis pela emancipação da Bossa Nova como causa social, divulgando artistas iniciantes em seus bares, como o famoso Jogral. “Maria, Carnaval e Cinzas” terminou em quinto lugar, com toda a justiça do mundo.
Um hoje ignorado Sidney Miller fez uma canção longa e monótona, mas nem por isso desinteressante. “A Estrada e o Violeiro”, interpretada por ele e Nara Leão, tem uma levada gostosa e uma letra muito bem feita. Apesar de ser rejeitado pelos tradicionalistas por fazer uma fusão global entre a música popular e movimentos de vanguarda, como a pop arte (que levaria ao seu álbum “Do Guarany ao Guaraná”, de 1968), Sidney fez uma obra impecável e que merece ser lembrada sempre. “A Estrada e o Violeiro” é uma destes primeiros grandes marcos na história de nosso cancioneiro.
Por fim, deixar aqui a minha tristeza com o preconceito gerado por este festival a espetacular figura do Sérgio Ricardo, que ficou marginalizado pela sua (realmente infeliz) “Beto Bom de Bola”. A música que procurou cruzar samba, futebol e Garrincha, paixões do público brasileiro, era fraca e mal-feita, verdade. Nem de longe se comparava a outras obras marcantes deste músico carioca, como a trilha de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Zelão”, “Este Mundo é Meu” e “Luandaluar”. Porém, foi injustamente vaiado e agredido, tanto pelos grupos de vanguarda quanto pelos fãs da Jovem Guarda. Irritado, frustrado em não conseguir cantar sua canção, este homem explodiu seu violão em mil pedaços e devolveu toda aquela frustração para o público. Hoje esquecido, Sérgio deixou um grande legado para nossa canção. Fica aqui a lembrança e a esperança de que, algum dia, alguém se lembre que “todo morro entendeu quanto Zelão chorou, ninguém riu, ninguém brincou e era carnaval”.

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